As Neblinas da Alma

João, costumeiramente acordara cedo, antes mesmo de os galos sinfonicamente cantarem. A rotina inspirava sua vida. No entanto, numa amanhã atípica, ao despertar de sua redinha, sentiu que seu mundo interior ficou turvo de pensamentos, angústias, dúvidas, horrores existenciais. Era a consciência que eclodia e se ampliava dentro de si como um balão que recebe ar até o limite. João estava farto de viver, o mundo lhe parecia um espelho quebrado que reflete as coisas, as pessoas tornara-se sombras das próprias sombras, tudo lhe parecia sem sentido, o vácuo ameaçava penetrar em tudo....Atordoado com o mal-estar de ver as coisas pelo avesso, João ia aos poucos morrendo, morria nele a velha imagem da besta homem. O novo ser que nascia naquele pobre homem dizia: – Para nascer pensamentos profundos a respeito do mundo, é preciso sentir previamente o frio das neblinas interiores, pois é graças a esse frio que as chamas da criação faziam sentido existir. João se transformou em amigo dos mistérios. Desde então, os aspectos da existência que outrora ignorava, ganhou cor, intensidade, espessura e tudo convidava a dúvida. Abismado em suas reflexões solitárias, dizia ele – Os homens, as criaturas do sentido, vivem os tormentos de viver em um mundo onde eles mesmos inventaram, mas se negam a confessar. É provável que algo em nós seja amante da ilusão, uma vez que os homens apagam as fronteiras entre eles e a realidade. Talvez as paisagem exteriores influenciam os sentimentos humanos. Estes, não surgem do nada, mas espelham a realidade que os rodeiam. João ao sair de casa depara-se com um dia incerto, suas disposições não estavam de mãos dadas com o clima que tal dia oferecera. Ficou perplexo, inconformado com o que seus olhos contemplavam. Então disse para si mesmo: – Nessa manhã o dia nasceu timidamente como se preparasse as mais insuspeitáveis surpresas aos homens. O sol, esse grande olho cósmico que observa os pobres mortais nas suas misérias diárias, apareceu no firmamento cercado de nuvens que ameaçavam o asfixiar. Sua luz não brilhou intensamente. Era um dia frio, como quase todos os dias na Serra da Ibiapaba. A neblina nas matas trazia ares míticos aos olhos, atravessar uma neblina é como atravessar um fantasma. Mas tudo, em última análise, não se reduz a uma alma criadora de sentidos? Se tirássemos a criatura humana de cena, não há mais valores, o coração das coisas não palpita por si mesmo. É preciso que a besta humana entre no palco... Será que João tornara-se um filósofo? A estranheza em relação à sua própria espécie tomou conta de seus hábitos. Talvez ele esteja em via de transmuta-se em um pensador, mas para isso muito dores teria que enfrentar. Sozinho em meio a uma neblina ofuscante, em diálogo consigo mesmo, pensou: – Pensar é arriscar-se nos labirintos do mundo, os abismos nos esperam. Os homens precisam aprender que a vida não é um conjunto de palavras entre o bem e o mal, mas viver é estar diante do indeterminado. Destronar o homem de seu centro e importância, desmascarar sua soberba em relação a si mesmos, revelar a criatura humana a ilusão que veste para esconder o que realmente é, mostrar os alicerces quiméricos nos quais se desenha a figura do homem ao longo do tempo: eis a tarefa do filósofo... O mundo nos devolve o olhar que o exigimos, assim, a existência tem um caráter perspectivista. Quem até agora ousou interpretar o mundo, ousou também quebrar palavras, criar valores e imaginar formas de viver. João fora corajoso, melancólico e paradoxalmente feliz. Muitos consideram um filósofo um ser pessimista e desprezador dos homens, mas questionar existência não significa negá-la, mas seduzi-la em nossa direção, aproxima-se de suas fontes de sentidos, é pegá-la com o coração. Os nomes batizam as coisas, mas não são reflexos fiéis das mesmas. Sim, João fora um homem que ousou ir além da imagem comum do homem, pois ele desafiou os limites semânticos que atribuímos ao mundo... Parado como um artista a contemplar uma nuance da natureza, indaga-se João: – Não será preciso inventar novos nomes para fecharmos as feriados de autodesprezo que homens jogaram sobre seus ombros? Não será necessário nascer novos homens dos escombros de seus fracassos? Sim, não há saída para o homem senão a reinvenção de si na história....Um raio de esperança nos ilumina através de um buraco da fechadura ...